"Homens rurais são retratados com estereótipos, mas também são meigos"
- 02/12/2025
Das notas, bilhetes e recados deixados pela equipa de cuidados domiciliários do avô nos seus últimos dias de vida surgiu o primeiro romance da autora Lisa Ridzén, que se transformou num fenómeno não só na Suécia, mas nos 35 países onde foi publicado. "Quando as Aves Voam para Sul" traça a vida de Bo, um idoso que se vê confrontado com a sua crescente falta de autonomia e com a consequente separação do seu cão, Sixten, que é a sua única companhia desde o internamento da esposa, Fredrika.
É a Fredrika quem Bo narra o seu dia a dia, o que, conforme contou Lisa Ridzén ao Notícias ao Minuto, atuou como "uma forma simples de mostrar o quanto [ele] sente a sua falta e como pode ser difícil perder o parceiro de uma vida".
Doutoranda em Sociologia, a autora assumiu ainda que sempre nutriu interesse "pelos homens e pela masculinidade", focando a sua investigação nas comunidades rurais do extremo norte da Suécia. Esse interesse verteu na ficção, onde procurou "captar a complexidade do ser", ao invés de "reproduzir estereótipos de masculinidade". Isto porque, apesar do "estoicismo silencioso [e de] alguma agressividade", os homens daquela região "também são meigos, atenciosos, afetuosos, vulneráveis, inseguros, calorosos". Aliás, a estudiosa confessou que nunca se cansará "de ouvir que as pessoas choraram ao ler" a sua obra, "especialmente os homens".
Bo contar a sua história à esposa, Fredrika, é, em parte, uma forma simples de mostrar o quanto sente a sua falta e como pode ser difícil perder o parceiro de uma vida. Foi também uma escolha narrativa para mostrar o lugar importante que os nossos entes queridos muitas vezes ainda ocupam nos nossos pensamentos e na nossa vida quotidiana, mesmo depois de terem partido fisicamente
Partilhou, noutras entrevistas, que a história de Bo surgiu-lhe quando encontrou as anotações que os cuidadores do seu avô deixaram sobre o seu dia a dia, incluindo os seus pensamentos, o seu humor e os seus percalços. O que é que sentiu quando se deparou com o diário? Quanto do livro é facto e quanto é ficção?
Estava sentada na oficina do meu pai, a vasculhar caixas velhas, quando descobri os diários deixados pelos cuidadores do meu avô. Ao folhear as páginas, a personagem Bo simplesmente surgiu na minha mente. Lembro-me de que foi um momento muito forte, tanto pelas memórias que trouxe do meu próprio avô, como pela clareza desta nova personagem que apareceu de repente na minha cabeça. Ao contrário dos meus textos anteriores, Bo e a sua história – e até mesmo as outras personagens – surgiram essencialmente completos, e só tive de encontrar as palavras para escrever e estruturar a narrativa. Parecia que Bo estava a contar a sua história através de mim. Será que isso é um cliché de escritor?
O formato dos diários deixados pelos cuidadores do meu avô era-me muito familiar, uma vez que eu própria já trabalhei como cuidadora. A voz dos cuidadores transformou-se numa forma clara e natural de introduzir uma perspetiva externa na história que, de outra forma, seria inteiramente contada na perspetiva de Bo. As notas do livro foram retiradas dos registos de cuidados domiciliários do meu avô, mas reescritas para se adequarem à história de Bo.
Bo é particularmente próximo de Ingrid, mas despreza Eva-Lena. Estas personagens são baseadas em pessoas reais (ou em cuidadores reais)?
Todas as personagens do livro são, de certa forma, baseadas em pessoas reais, embora nenhuma personagem seja inteiramente baseada numa só pessoa. Os cuidadores que conheci, com quem trabalhei e sobre os quais ouvi falar de pessoas mais velhas são um grupo heterogéneo, tal como qualquer outro grupo de pessoas. Há cuidadores que são calorosos e empenhados, e há aqueles que não gostam do seu trabalho e que se limitam a cumprir à risca as suas funções. Portanto, não existe uma Eva-Lena na vida real, mas alguns aspetos da personagem são baseados em aspetos de pessoas reais. No entanto, trabalhei com uma cuidadora que foi uma grande inspiração para a personagem Ingrid!
O luto antecipado, as coisas que ficam por dizer e a nostalgia pelo passado são alguns dos temas principais do livro. Na verdade, o monólogo interior de Bo guia-nos pela história, na qual os acontecimentos passados e presentes se misturam. Ele também se dirige diretamente à sua esposa, Frederika, apesar de ela estar numa instituição de cuidados continuados devido à sua demência. Porque é que fez essas escolhas narrativas? Pode explicar o seu processo?
Era importante para mim tentar criar uma empatia intelectual e física, e uma proximidade com Bo. Queria que o leitor se sentisse o mais próximo possível de Bo, e escrever na primeira pessoa para a pessoa mais próxima da sua vida parecia a maneira mais direta de criar esse sentimento. Tinha também, como mencionei anteriormente, a sensação de que Bo estava a contar a sua história através de mim desde o momento em que apareceu na minha mente. Portanto, escrever a história na voz de Bo assemelhou-se, de certa forma, a deixá-lo falar.
Bo contar a sua história à esposa, Fredrika, é, em parte, uma forma simples de mostrar o quanto sente a sua falta e como pode ser difícil perder o parceiro de uma vida. Foi também uma escolha narrativa para mostrar o lugar importante que os nossos entes queridos muitas vezes ainda ocupam nos nossos pensamentos e na nossa vida quotidiana, mesmo depois de terem partido fisicamente. Agora vivo na casa do meu avô e, embora já tenham se passado 15 anos desde a sua morte, ainda sinto a sua presença em ações quotidianas, como trazer lenha e acender a lareira. Desta forma, há uma semelhança entre a minha saudade do meu avô e a saudade que Bo sente pela sua esposa. É um exemplo de como tentei criar um sentimento para e com Bo, relacionando-me com emoções reais, da minha própria experiência, em combinação com o que aprendi sobre as experiências das pessoas mais velhas.
Algo que também me impressionou em muitas pessoas mais velhas foi a forma como o passado parece tornar-se mais vívido para elas do que o presente. Misturar as linhas temporais do passado e do presente foi, portanto, em parte, um recurso para recriar essa sensação. Isso também serve outros propósitos, como mostrar as mudanças na masculinidade e na sociedade em geral ao longo do tempo.
Homens e rapazes, especialmente nas áreas rurais, são frequentemente retratados na literatura e noutros meios de comunicação de forma bastante estereotipada. É claro que há alguma verdade nesses estereótipos – o estoicismo silencioso, alguma agressividade. Mas os homens daqui também são meigos, atenciosos, afetuosos, vulneráveis, inseguros, calorosos
De que forma é que a sua investigação sobre homens que vivem em áreas pouco povoadas, particularmente no interior do norte da Suécia, moldou não só Bo, mas também Hans, Ture e até mesmo o pai de Bo? Tentou explorar diferentes estereótipos de masculinidade com cada um deles? Se sim, quais?
De certa forma, o interesse que sempre tive pelos homens e pela masculinidade influenciou tanto a minha escrita, como a minha investigação do doutoramento. Foi esse interesse que me levou a esta investigação e, obviamente, influencia a minha escrita. Sempre me interessei pela vida das pessoas e, sempre que posso, investigo, questiono e observo. Ao escrever o livro, conversei frequentemente com pessoas que conheço localmente e pedi-lhes detalhes sobre as suas experiências, expressões ou processos de pensamento. A minha investigação académica também envolve aprofundar a vida de homens de diferentes gerações e experiências de vida, mas todos desta área. Ler o trabalho de outros também me ajudou a colocar essas experiências em contextos sociais e históricos mais amplos.
Obviamente, por razões éticas, não incluí nenhuma das minhas análises académicas na minha ficção. Mas o campo de estudos sobre a masculinidade proporcionou-me novas perspetivas sobre certos aspetos da masculinidade, e a minha investigação (e a de outros) deu-me uma nova visão sobre as formas como a história colonial sueca molda as identidades dos homens (e de todos nós) no norte da Suécia.
Homens e rapazes, especialmente nas áreas rurais, são frequentemente retratados na literatura e noutros meios de comunicação de forma bastante estereotipada. É claro que há alguma verdade nesses estereótipos – o estoicismo silencioso, alguma agressividade. Mas os homens daqui também são meigos, atenciosos, afetuosos, vulneráveis, inseguros, calorosos. Em vez de procurar reproduzir estereótipos de masculinidade ou incorporar estereótipos em qualquer uma das minhas personagens, queria capturar a complexidade do ser. As tensões e lacunas onde os estereótipos se desfazem ou não nos mostram verdades válidas são, na minha opinião, mais interessantes. Para criar personagens completas e vivas, é necessário ir além dos estereótipos.
Há três gerações de homens claramente definidas na narrativa: Hans, Bo e Karl-Erik. No entanto, estão ligados pela dificuldade em partilhar o que realmente sentem, tanto que Bo teme que a sua relação com Hans seja tensa por causa do seu próprio pai. Foi essa a sua maneira de mostrar que somos um produto do nosso ambiente, mesmo que também tenhamos um papel a desempenhar no nosso próprio crescimento?
Esse foi, definitivamente, um dos aspetos. Somos um produto do nosso tempo, do nosso contexto, das nossas relações com os outros e do lugar onde vivemos. Essa dificuldade em partilhar o que realmente sentem é um traço comum na masculinidade ao longo das suas vidas, mas também não é estática: Bo está muito longe da maneira de ser do seu pai, e Hans está ainda mais longe, como se vê na sua relação com a própria filha. Mas isto não significa contar uma história de simples progressão e progresso: há dificuldades que Hans sente que são estranhas a Bo, como a sua relação com o trabalho. Uma coisa que tentei transmitir foi a sensação de que a maioria das pessoas, se não todas, está a fazer o melhor que pode com o que tem. Bo luta até ao fim para ser um pai melhor, uma pessoa melhor e para deixar este mundo com a sua relação com Hans sanada.
Capa de "Quando as Aves Voam para Sul"© Penguin Random House
À medida que a história progride, a saúde de Bo piora. Um dos principais conflitos com Hans surge devido à sua crescente falta de autonomia, que afeta diretamente a sua capacidade de cuidar do seu cão, Sixten. Foi uma situação que testemunhou quando trabalhava como cuidadora? Foi difícil escrever sobre isso, dado que é um tema emocionalmente pesado?
Não testemunhei essa situação específica, mas a perda de autonomia parece ser uma das maiores dificuldades do envelhecimento, e não é difícil de entender porquê, na minha opinião. Na verdade, acho que é um grande medo para muitas pessoas. Há também a perspetiva dos filhos: muitas vezes é difícil aceitar a mudança de papéis. As pessoas geralmente querem ajudar os seus pais idosos, mas nem sempre é fácil saber que tipo de ajuda e quanta ajuda dar, ou mesmo se isso será considerado útil! A decisão mais correta na opinião da família, dos médicos ou dos cuidadores nem sempre é necessariamente a melhor para a pessoa. É importante tentar compreender todas as necessidades de alguém, se quisermos ajudá-lo de forma mais completa. É claro que há pessoas que desempenham um papel diminuto ou não existente na vida dos seus pais idosos, e não sei se essa é a melhor solução.
Cresci com cães e tenho uma cadela, a Possum. A relação que tenho com ela é diferente de qualquer outra relação na minha vida. Recebo dela coisas que não consigo receber das pessoas e posso ser de uma forma que não consigo ser com as pessoas. Muitos homens nas zonas rurais daqui têm cães, muitas vezes cães de caça, que também são membros da família e companheiros. É uma parte da vida que queria incluir. Para os idosos, são tão importantes quanto para qualquer outra pessoa que ama animais; talvez até mais importantes, porque um cão terá sempre tempo, mesmo que os outros estejam ocupados com as suas próprias vidas. Sixten é mais do que uma companhia para Bo – também lhe dá contacto físico, contacto visual, o calor e os cheiros de outro ser vivo. Estas são coisas que podem fazer falta quando os filhos saem de casa e o parceiro já não está presente. No entanto, de forma geral, não é difícil para mim escrever sobre temas emocionalmente pesados, não! As questões abordadas no livro são coisas em que penso constantemente, e escrever sobre elas é, na verdade, libertador.
Bo é muito próximo da sua neta, Ellinor. Ela é baseada em si de alguma forma?
Até certo ponto, sim! Ela tem um papel secundário e é uma das personagens menos desenvolvidas do livro, mas há semelhanças nas nossas relações com os nossos avós e na forma como as nossas vidas se desenrolam no final das vidas deles.
Viver na casa do meu avô e pensar no Bo com tanta frequência mantém-no presente na minha vida de uma forma que me traz conforto e um sentimento de pertença e de conexão. Saber que me deito na casa dele, exatamente onde ele costumava deitar-se, e que escrevi uma história sobre o mundo dele, deixá-lo-ia orgulhoso, tenho a certeza
Muitos leitores confessaram que a história de Bo lhes despertou emoções muito fortes. Já alguém lhe disse que o seu livro o fez chorar?
Sim, muitas pessoas! Fico sempre muito feliz quando ouço que as pessoas choraram ao ler o livro, porque isso significa que consegui atingir um dos meus principais objetivos: fazer com que se identifiquem com Bo e sintam a sua história. Isso também me mostra que é uma história que vale a pena ser contada. Nunca me cansarei de ouvir que as pessoas choraram ao ler "Quando as Aves Voam para Sul", especialmente os homens!
Revelou, noutras entrevistas, que o seu avô foi abandonado pela mãe, quando era bebé, em Estocolmo. O que é que pode contar sobre ele? O que acha que ele diria se soubesse que agora existe um livro baseado na última fase da sua vida?
Na minha mente, Bo parece-se e move-se como o meu avô paterno; vive na casa do meu avô e movimenta-se no mundo físico do meu avô. No entanto, Bo não é o meu avô, e o livro não é um diário das minhas experiências pessoais. Uma vez, o meu irmão disse-me: "Tens de garantir que as pessoas entendem que Bo não é o avô! O avô não era amargo e chorão como o Bo!" Era um homem caloroso e feliz. Foi adotado por uma família mais a norte e estava sempre grato por tudo o que tinha na vida. Vivia no momento e era feliz com as pequenas coisas, embora não lhe parecessem pequenas, suponho! Viveu tempos de grandes mudanças sociais e também tinha muito orgulho em tudo o que alcançou na vida.
Era muito próxima do meu avô – ele vivia na nossa aldeia, quando eu estava a crescer, e comia connosco todos os dias. Estava sempre com ele e até ajudava com alguns cuidados. Viver na casa do meu avô e pensar no Bo com tanta frequência mantém-no presente na minha vida de uma forma que me traz conforto e um sentimento de pertença e de conexão. Saber que me deito na casa dele, exatamente onde ele costumava deitar-se, e que escrevi uma história sobre o mundo dele, deixá-lo-ia orgulhoso, tenho a certeza. Tudo o que a família dele fazia deixava-o sempre orgulhoso!
E no que é que está a trabalhar atualmente?
Infelizmente, como estou de baixa devido a uma lesão na cabeça, não consigo escrever. Já estava bastante avançada no meu próximo livro, mas é impossível dizer quando conseguirei terminá-lo, neste momento. Posso dizer que o meu próximo livro se passa no mesmo mundo que "Quando as Aves Voam para Sul", mas não será sobre um homem idoso. Pessoas mais jovens estarão no centro da narrativa, embora as tristezas e as dificuldades da vida também tenham o seu lugar. E haverá ainda mais cães do que neste livro!
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